A Professora Doutora Maria Regina Redinha, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP), afirmou em 17 de setembro, de forma categórica que “é ilegal o entendimento de que os trabalhadores de risco têm que recorrer a baixa médica, estando eles em plenas condições para a execução da prestação”. A reconhecida académica falava como oradora convidada do Canal 4 da AFIET no webinar "Teletrabalho no Direito: Os direitos no teletrabalho", que contou com a moderação de Pedro Barreiros (Vice-Presidente da AFIET e Diretor do Canal 4) e José Cordeiro, Secretário-Adjunto da UGT (União Geral de Trabalhadores).
Em seu entender, “há nitidamente um entorse do conceito de baixa médica porque, apesar da situação de risco ser uma causa imputável ao trabalhador, não é uma situação de impossibilidade da prestação. E se o próprio legislador impõe nalguns casos o regime parece que todas as causas são válidas exceto a salvaguarda da saúde do prestador ou do trabalhador”. Maria Regina Redinha sublinha que para essa finalidade o teletrabalho, como o legislador o entende, já não serve. Além de que isto é “uma adulteração da definição de baixa médica, porque não há nenhuma situação de incapacidade, e sim uma situação de potencial risco”. Ora, conclui, “o empregador em qualquer regime tem uma obrigação de minorar o risco, não de expor os trabalhadores ao risco”.
Esta especialista no Direito do Teletrabalho espera “que se esta situação não for alterada isto venha a ser discutido nos tribunais, e que haja um debate sério sobre a finalidade da baixa médica, a delimitação das situações que ela compreende e de como isso hoje está a ser no fundo usado quase como um instrumento de coerção para a prestação de atividade por certas categorias de trabalhadores”.
Para esta renomada Professora Auxiliar da Universidade do Porto, isto tem uma motivação que todos nós conseguimos compreender, que é o facto de termos um problema demográfico muito pouco favorável à prestação presencial numa situação destas. Porém, há organizações em que há mais trabalhadores de risco do que de trabalhadores não de risco, mas “isso não pode naturalmente ser um fator de consideração da solução legislativa”.
Sempre frontal na sua argumentação, Maria Regina Redinha realça que o empregador tem uma obrigação de segurança, de eximir os trabalhadores a riscos. Por outro lado há uma série de situações em que é obrigatório o recurso ao teletrabalho. Ora, se é obrigatório para umas situações parece que tudo é muito importante exceto a segurança de determinados trabalhadores. Por isso espera que esta questão, a persistir, seja discutida judicialmente, porque não tem dúvida de que ela não se poderá manter.
“O que estamos a fazer é trabalho remoto ou à distância”
Reconhecida especialista na matéria, nos campos académico e profissional, Maria Regina Redinha trouxe a este webinar do Canal 4 uma perspetiva de evolução ao longo dos tempos da interpretação do que é teletrabalho e da evolução do regime legal do teletrabalho em Portugal, à luz do Direito Europeu e Internacional, defendendo quase como que uma "declaração de interesse" inicial que "fala-se em teletrabalho, mas o que estamos a fazer é trabalho remoto ou à distância".
Mas antes, Pedro Barreiros e José Manuel Cordeiro lançaram a conversa deixando algumas questões à oradora convidada que passaram pela "provocação" sobre o caminho que os sindicatos devem seguir na questão da negociação coletiva e pela possível precariedade que pode estar a ser reforçada no mercado de trabalho pelas novas utilizações do trabalho remoto.
Maria Regina Redinha não fugiu na sua apresentação a estas questões e começou por sublinhar que "o trabalho é sempre mal visto e pouco cuidado quando a situação social passa por problemas como o que vivemos agora (COVID-19)", considerando que é de realçar positivamente que, apesar de tudo, aquilo a que chamamos de trabalho digno já é uma luta comum de vários Estados, existindo uma mudança muito sentida na última década relativamente à preocupação com a qualidade do emprego em detrimento da quantidade.
Em seu parecer, na noção de teletrabalho contrapõe-se a uma relação modelar onde "a atividade dependente de um trabalhador o obriga a prestar retribuição laboral, num horário completo e num posto de trabalho nas instalações da empresa", algo que tem vindo a ser adaptado aos tempos modernos, através do já referido trabalho digno que engloba promoção de emprego, tornando acessível a um maior número de pessoas, o desenvolvimento e reforço da proteção social, mas também da promoção do diálogo social e do respeito e aplicação dos princípios e direitos fundamentais no trabalho, algo que ficou bem explícito aquando da criação do pilar dos direitos sociais pela União Europeia.
Mas também a qualidade do emprego, na visão de Maria Regina Redinha, através de uma tutela descentralizada da personalidade no código de trabalho, vai permitir uma discussão do controlo de prestação de trabalho. Discussão essa que passa pela liberdade de expressão e opinião, reserva da intimidade da vida privada, proteção de dados pessoais, meios de vigilância à distância e confidencialidade de mensagens. Estes são desafios que o teletrabalho cria diariamente e para os quais urge encontrar mecanismos para que sejam cumpridos.
Mas voltando atrás no tempo, a oradora trouxe à conversa o Acordo do Quadro Europeu, que era uma "uma espécie de acordo rarefeito, de apresentação da figura do teletrabalho. Tinha pouco relevo na Europa, mas já começava a aparecer em alguns países, principalmente nos nórdicos e no Reino Unido. E então, devido a isso, a noção de teletrabalho foi sendo introduzida", acrescentando ainda que esse acordo incluía "várias considerações gerais para o teletrabalho como a definição e objeto, condições de trabalho, proteção de dados, privacidade, saúde e segurança ou do equipamento, podendo ser considerado como o 'propulsor' do teletrabalho na Europa. É curioso que na época, em inícios deste século, existiam provavelmente mais estudiosos da matéria do que trabalhadores neste regime".
E em Portugal? Como foi introduzido o conceito na legislação?
Maria Regina Redinha respondeu dizendo que foi em 2003 "que a noção geral de teletrabalho entrou na nossa legislação e assentava acima de tudo na consideração de que este era um trabalho habitualmente prestado fora da empresa do empregador, sendo que este 'habitualmente' abria aqui um problema porque podia ser de forma contínua ou descontínua e também que a prestação laboral seria realizada através do recurso a tecnologias de informação". E aqui verificou-se alguma mudança no paradigma português de introdução do teletrabalho que passou a ter pela primeira vez uma dimensão mais qualitativa.
E com a evolução do teletrabalho, verificaram-se também várias novas formas de o realizar. Desde o trabalho desligado da empresa ao que mais vemos nos dias de hoje, com todos ligados em equipa, a evolução é explícita. Assim como a tipologia organizacional, passando o domicílio, como verificámos agora durante a pandemia, a ser o principal local de trabalho. E em termos jurídicos também a evolução da noção de teletrabalho teve reflexos notórios pois "aquilo que vemos hoje não é um contrato de teletrabalho, mas um acordo de teletrabalho. Ninguém assinou contrato com as condições de trabalho expressas para fora do escritório, escola, o que seja. Mas na forma não temos nenhum documento escrito, existe omissão das funções a desempenhar e acima de tudo não existe referência alguma do regime de teletrabalho", afirmou a convidada.
Contratação coletiva precisa de mais inovação
A pandemia em que o mundo vive desde Março provocou uma discussão sobre o regime de teletrabalho "mas o que se tem passado é, como já referi no início da nossa conversa, tudo menos teletrabalho. Chamo-lhe trabalho remoto, à distância, mas nunca teletrabalho. Estamos a viver algo completamente fora de tudo aquilo que apresentei agora na evolução da noção de teletrabalho. E as alterações ao regime de teletrabalho criadas pelo legislador na Resolução nº70/2020, de 11 de setembro, abrem a porta a que este regime seja realizado sem acordo com o trabalhador. E isso é algo que deve ser analisado", contestou a oradora deste webinar.
A fechar a sua apresentação, Maria Regina Redinha, deixou a sua visão sobre o caminho a seguir, considerando que "o caminho é o de outros países: aplicar o 'smart-working’ que é uma modalidade que combina o modelo tradicional com uma organização flexível de tempo e local de trabalho através de instrumentos tecnológicos", deixando um alerta final com a referência de que é necessário perceber como estamos a viver a questão do teletrabalho na parte jurídica pois o que se percebe neste momento é que "os nossos direitos foram pirateados!".
No período reservado a questões dos participantes, as perguntas mais colocadas versaram sobre as preocupações das regras do trabalho dos docentes nas escolas aquando da necessidade do recurso às aulas a distância ou os direitos e consequências a nível jurídico, como no caso das baixas médicas relativas aos professores de risco.
Questionada no final do webinar sobre o modo como as questões do teletrabalho estão expressas na contratação coletiva, Maria Regina Redinha respondeu que nesse âmbito já tinha uma perspetiva mais desencantada: ”Não há uma reformulação ou uma particular inovação neste contributo. A contratação coletiva tem-se preocupado pouco com as modalidades do contrato de trabalho” – frisou, para depois acrescentar: “Isto por uma série de razões estruturais e conjunturais, mas não há muita inovação no âmbito da contratação coletiva quanto ao desenho das modalidades do contrato de trabalho, exceto na contratação a termo e do contrato por tempo indeterminado”.
Daí ser necessário desenvolver “modelos mais criativos, mais plásticos e que permitam alargar e modernizar a legislação laboral, de uma forma mais próxima dos diferentes setores de atividade”.
Em suma, foi consensual que existe um enorme atropelo aos direitos dos trabalhadores, que este não é um tempo de teletrabalho como existe em noção jurídica e que a única certeza que existe no momento é que vai exigir muito trabalho a sindicalistas e a juristas para se alcançarem as almejadas adaptações e alterações no Código de Trabalho.